Artigo 21.º da Constituição

<i>Todos têm o direito de resistir (...) e de repelir pela força...</i>

Anselmo Dias

No passado dia 19 de Julho o presidente do conselho de administração do BPI, Fernando Ulrich, banqueiro por conta de outrem e assíduo comentador político, deu uma entrevista na TVI24, na qual declarou que, se a Constituição permitiu a decisão do Tribunal Constitucional (TC) considerar ilegal o corte do subsídio de Natal e de férias aos funcionários públicos e aos reformados, então – disse ele –, «Teremos de discutir a revisão da Constituição».

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Dias antes, na TVI e na RTP, quase simultaneamente, Fernando Catroga e António Mexia, conhecidos e proveitosos sanguessugas dos clientes da EDP, formularam o mesmo objectivo, indo um deles, com sorriso alarve, ao ponto de afirmar que a Constituição não pode sobrepor-se a uma decisão política do Governo na base de um acordo firmado com a troika.

Pouco tempo antes um ex-dirigente da CIP, Ferraz da Costa, comungou do mesmo ideário.

No dia 27 de Julho, no contexto do acórdão do TC, outro banqueiro por conta de outrem, Nuno Amado, do BCP, declarou: «É premente alguma revisão da Constituição».

A cruzada em curso contra a Constituição não se circunscreve apenas aos banqueiros e aos administradores das empresas majestáticas – EDP, GALP, PT, Sonae, Pingo Doce –, entre outras.

Há mais gente envolvida nessa cruzada.

É, por exemplo, o caso de Rui Rio (RR), Presidente da Câmara do Porto que, em 3 de Agosto, em entrevista na RTP, sugeriu também a revisão da Constituição.

E com que argumentos? Com o argumento de que não havendo vontade por parte dos agentes da Justiça em torná-la mais rápida e eficaz, há que ultrapassar tal situação através de uma revisão da Constituição.

Esta opinião foi emitida no contexto de uma providência cautelar interposta por (RR) aquando da distribuição de uma revista, cuja capa ostentava o seguinte: «Rio és um FDP», sigla que o visado associou a «filho da p...».

É verdade que (RR) não correlacionou a revisão Constitucional àquela sigla. Mas associou-a ao mau funcionamento de uma componente do Estado, como se o défice funcional de fulano e sicrano na área da Justiça justificasse uma alteração da lei fundamental do País.

Para além de (RR) vislumbra-se, também, outros actores a defenderem a revisão Constitucional.

Uns com o argumento de que a saída da crise só se resolve no contexto de uma Europa federalizada, com uma nova arquitectura institucional onde sobressaia um Senado constituído por representantes de cada um dos estados, opção associada a mais transferência dos poderes destes para Bruxelas.

Outros, como é o caso do omnipresente televisivo Pires de Lima, empresário cervejeiro que, em 29 de Agosto na SIC, declarou que a situação gravosa nos últimos dez anos teve como causa directa a existência da actual Constituição a qual, em seu entender, deve rapidamente ser alterada.

Curiosamente, ou talvez não, nesse mesmo programa, foi um destacado colaborador de Pinto Balsemão, o ex-director do Expresso, Henrique Monteiro, que lançou a «dica» para aquele dirigente do CDS bolsar aquele disparate, indivíduo que exorta às boas práticas mas que silencia todas as conexões de correligionários políticos aos processos «Portucale», «Casino de Lisboa» e à compra dos submarinos.

Os patronos e os correligionários de Passos Coelho movem-se, pois, num movimento tentacular que inclui personalidades e dirigentes de empresas envolvidas no processo «Furacão», na fuga aos impostos, na manipulação do mercado de acções e no roubo à carteira dos consumidores por via dessa escandaleira que é a formação dos preços dos serviços no sistema financeiro, na electricidade, nos combustíveis, nas comunicações e nas grandes superfícies. Tudo boa gente.

O sentido desse movimento bifurca-se em dois planos:

na privatização do que ainda resta do sector empresarial do Estado, cuja dimensão não representa mais de uns 3,1% do PIB. (Nota: valor reportado à fase final do governo de José Sócrates);

na subversão da Constituição, quer na sua parte programática, quer, sobretudo, na parte substantiva dos Capítulos II e III, ou seja, nos Direitos e Deveres Sociais e nos Direitos e Deveres Culturais, designadamente, no Artigo 63.º «Segurança Social e Solidariedade», no Artigo 64.º «Saúde» e no Artigo 74.º «Ensino».

No que diz respeito à privatização convém salientar que, na opinião de alguns, o que falta privatizar é muito pouco comparativamente ao que foi feito durante os governos de Cavaco Silva, António Guterres, Durão Barroso, Santana Lopes e José Sócrates.

É preciso algum cuidado com esta opinião, porque o que ainda resta do sector empresarial do Estado tem um enorme valor de «encaixe» e, sobretudo, uma enorme importância estratégica na medida que engloba empresas como a TAP, ANA, RTP, Estaleiros Navais de Viana do Castelo, CTT, CP Carga, Águas de Portugal, e componentes seguradora e de saúde da Caixa Geral de Depósitos, entre outras empresas, cujo destino é a alienação a preço de saldo ao capital privado.

A que capital?

Preferencialmente ao capital estrangeiro, sabido, como se sabe, que os capitalistas portugueses beneficiaram, ao longo dos anos, com o negócio das privatizações à custa de empréstimos bancários e não à custa de capital próprio. Compraram, enriqueceram e manipularam o património público com o dinheiro dos outros e não com o seu próprio dinheiro.

Dado que a crise criada pelo sistema gerou limitações à liquidez, os capitalistas portugueses «chucham no dedo» quanto ao acesso àquelas privatizações, embora não totalmente.

Ainda lhes resta, pela corrupção, esquemas similares àquele que o processo «Monte Branco» assinalou aquando da venda da EDP a capitais chineses, método associado a comportamentos corruptos que não deixarão de se repetir nas privatizações, designadamente na ANA, mercê da recente transferência dos terrenos do aeroporto, por parte da Câmara Municipal de Lisboa (CML), para o Estado.

Este negócio, considerado um favor do Governo à CML, pode configurar uma potencial transferência de mais-valia a quem for atribuída a titularidade da ANA.

Aguardemos pelo «negócio».

Aguardemos pelo conteúdo da minuta do acordo a ser elaborada por um grande escritório de advogados ligado ao PSD, ao CDS-PP e ao PS e aguardemos pela redacção armadilhada do texto final, texto que, em caso de litígio, imporá fatalmente um prejuízo para o Estado.

E aguardemos, igualmente, pelo percurso dos ministros e secretários de Estado que irão tutelar o «negócio».

Quem, a este propósito, não se lembra, entre muitos outros, de Joaquim Ferreira do Amaral, Jorge Coelho e Joaquim Pina Moura ?

Aguardemos, também, pela privatização da TAP, «negócio» que tem levado o Ministério da Economia a viajar pela Alemanha, Turquia e vários outros países, por forma a que, nos prazos fixados no acordo das troikas, o nosso País deixe de ter uma estratégica empresa ligada aos transportes aéreos como, no passado recente, aconteceu à nossa marinha mercante.

Um país sem meios próprios no transporte marítimo, sem aviação comercial e, em breve, sem transporte ferroviário ligado ao transporte de mercadorias; um país dependente do estrangeiro na área dos produtos alimentares; um país em vias de delegar no capital privado o serviço público de rádio e televisão; um país com tais limitações pode ser considerado um país totalmente soberano?

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Estratégia para a revisão constitucional

No que diz respeito à revisão Constitucional salientemos o seguinte:

1.º No passado, só a partir da revisão Constitucional de 1989, suportada por um acordo feito no ano anterior entre Marcelo Rebelo de Sousa e António Guterres, é que foi possível, no âmbito do normativo vigente, levar a cabo as privatizações, embora algumas delas tenham sido concretizadas antes por Cavaco Silva, através de um «chico-espertismo» com o pretexto de que o objecto das nacionalizações foi o capital social das empresas e não as empresas em si.

2.º Recentemente, Passos Coelho tentou, logo que se tornou clara a última derrota eleitoral do PS, colocar na ordem do dia a revisão Constitucional.

E quem foi encarregado dessa missão?

Foi um ex-banqueiro por conta de outrem, Paulo Teixeira Pinto, indivíduo ligado à Causa Monárquica e, no passado, à Opus Dei e à «A Ordem Nova», associação de extrema-direita que perfilhou o título de uma revista fascista.

Este indivíduo, punido pela Comissão do Mercado de Valores em 200 000 euros e por um ano de inibição no acesso a cargos de administração no sector financeiro devido a irregularidades cometidas no BCP, congeminou uma proposta de revisão Constitucional cujo conteúdo, por ser tão retrógrado, mereceu uma generalizada oposição, incluindo a de sectores moderados do seu próprio partido, que a rejeitaram não só pelo seu conteúdo, como pela sua oportunidade.

O PSD congelou, por razões tácticas, a proposta de Paulo Teixeira Pinto com a qual se pretendia alterar cerca de 1/3 da Constituição, mas não congelou o objectivo de uma subversiva revisão da mesma.

3.º Hoje em dia, com um núcleo fascizante no Governo, vislumbra-se uma outra estratégia com vista à próxima revisão da Constituição e que é esta: o Governo, a pretexto da crise e da intervenção externa, vai, a pouco pouco, apoiado num vasto conjunto de comentadores que enxameiam a comunicação social, designadamente as televisões, formatando a opinião pública para um novo paradigma comportamental por forma a subalternizar o papel do Estado e a maximizar o individualismo no que diz respeito à satisfação das necessidades pessoais e familiares.

O Estado, esse, dizem eles, deve preocupar-se, exclusivamente, com a diplomacia, com as forças armadas e de segurança, sobretudo estas por forma a evitar o desespero de um qualquer Buíça.

Quanto à aprovação da próxima revisão constitucional, a gente que está no Governo não mostra grandes preocupações.

Eles sabem que poderão contar com o voto certo e seguro do PS. Como sempre aconteceu.

O Estado mínimo e o Estado máximo

O Estado mínimo, imposto à generalidade da população e submetido ao Estado máximo da oligarquia, é um projecto em curso.

Ele está, a pouco e pouco, sendo construído por forma a que, logo que consolidado, o Governo possa dizer:

«A realidade é esta».

«Logo – argumentam eles –, a lei deve reflectir a realidade».

Vejamos, a este propósito, alguns exemplos do que se passa na área social.

No abono de família houve uma redução de cerca de 600 000 beneficiários num espaço de pouco mais de um ano.

Dos 1 200 000 desempregados apenas havia, em 31/12/2011, cerca de 317 000 a beneficiar do respectivo subsídio.

Quanto à doença, esse número, naquela data, correspondia 96 045 beneficiários a que acresciam 459 subsídios atribuídos a doentes com tuberculose.

Na Saúde, em 2011, assistiu-se a um decréscimo de despesas do Estado, quantificado em 4,6% comparativamente ao ano anterior.

A esta redução por parte do Estado corresponde um aumento das despesas das famílias cujos encargos totalizaram, naquele ano, cerca de 1186 euros.

Em 2000 as despesas familiares com a Saúde orçavam os 719 euros, o que significa um aumento de 65% no espaço de dez anos.

As despesas com o Ensino, em termos percentuais, ainda foram maiores, cerca de 152%, passando de uma média anual 175 euros para 441 euros, no espaço temporal atrás referido.

Concluindo, todos os indicadores atrás referidos confluem num único sentido: o papel do Estado recua nas suas funções sociais, recuo suportado pelo agravamento das despesas familiares.

A estratégia em curso vai, contudo, mais longe, ou seja, o poder instalado não deseja apenas a redução das prestações referidas. O Governo de Passos Coelho pretende que as pessoas, durante um certo tempo, convivam resignadamente com essa realidade por forma a aceitaram, posteriormente, as alterações constitucionais que contemplem a ausência do Estado no sistema público de Segurança Social, no Serviço Nacional de Saúde e na escola pública, a par daquilo que é o papel supletivo do Estado na área da cultura.

Esta operação está em curso e envolve toda uma tropa fandanga com assento diário na comunicação social, sobretudo na RTP, SIC e TVI.

O argumentário dessa gente é muito lacónico e resume-se no seguinte: um Estado moderno não deve desperdiçar dinheiro com essas ninharias que incorporam o Estado Social. Por outro lado, argumentam eles, não havendo dinheiro não deve haver vícios.

Quem, a este respeito, tiver dúvidas que reveja a entrevista feita na SIC Notícias, no passado dia 26 de Julho, ao economista Cantiga Esteves.

O entrevistador, num rebuscado estilo gongórico alusivo às manifestações populares contra o Governo, atribuiu-as «à ala esquerda da rua», formulação insinuando o envolvimento do PCP e da CGTP.

À pergunta redonda do jornalista sobre a reacção das pessoas ao retrocesso social em curso correspondeu a seguinte resposta lacónica do professor de economia: «O bem-estar que tínhamos acabou», expressão gémea utilizada por Medina Carreira e similares vozes do dono, que todos os dias, com o beneplácito dos patrões das empresas de comunicação social, chamam a si a lavagem ao cérebro dos espectadores e o «trabalho sujo da desinformação», actividades que deviam caber aos governantes e que, infelizmente, são reproduzidas por alguns jornalistas e comentadores de forma idêntica à de qualquer ser acéfalo.

Para essa gente, não há um outro modelo de desenvolvimento ao serviço do País e do nosso povo, não há outra forma de financiar as funções sociais do Estado e não há a desigualdade social entre ricos e pobres que – utilizando a expressão de Mário Crespo na SIC Notícias –, «a ala esquerda da rua» quer fazer crer. Nada disso.

Para essa gente, banqueiros, especuladores, agiotas, accionistas das grandes empresas e seus serventuários na comunicação social e nos partidos políticos do rotativismo governamental, o que importa é um novo paradigma que, por aproximações sucessivas, cada vez mais se identifique com a fascização social.

O processo em curso é um processo evolutivo, tal como aconteceu com o regime de Salazar.

O fascismo português, na configuração que todos nós conhecemos, não nasceu rigorosamente no dia 28 de Maio de 1926.

A Constituição salazarista só foi promulgada em 11 de Abril de 1933, momento que simboliza bem a passagem da ditadura para o fascismo, percurso certamente ambicionado por alguns daqueles que reclamam a revisão da Constituição.

Para essa gente, o actual modelo social irá acabar por decisão do poder executivo e, nesse sentido, a Constituição deve conformar-se com essa morte. Ponto final.

Para essa gente, o actual Artigo 3.º da Lei Fundamental do País, que estabelece o principio da «Soberania e legalidade» deve ser lido conforme o espírito da Constituição de 1933, ou seja, não é o Governo que se subordina à Constituição, mas a Constituição que se subordina ao Governo.

Para essa gente, e para todos aqueles que comungam das mesmas ideias, o Artigo 21.º da Constituição também é para riscar. Esse artigo que diz o seguinte:

«Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão...».

Uma adenda


Alguns dias após a conclusão deste artigo teve lugar uma conferência de imprensa de Passos Coelho, cujo conteúdo constitui um dos mais sinistros eventos da nossa história contemporânea. Ele declarou uma das maiores transferências de recursos do factor trabalho para o factor capital, beneficiando um leque muito amplo de patrões, embora os maiores ganhadores sejam os accionistas das grandes empresas, designadamente da banca, seguros, electricidade, combustíveis, comunicações, cadeias de distribuição, cujos sectores constituem o interface da dança de cadeiras entre as empresas e o governo e entre o governo e as empresas.

Falamos de qualquer coisa como cerca de 2,3 mil milhões de euros, cálculo baseado nos últimos dados disponíveis dos «Quadros de Pessoal», ou seja, num ganho médio mensal de 1036,44 euros correspondentes a 2 759 400 trabalhadores por conta de outrem do sector privado.

Passados quatro dias deste roubo ao rendimento do trabalho coube a Vítor Gaspar anunciar mais um outro roubo, ou seja, a alteração da estrutura dos escalões do IRS, certamente à revelia do n.º 1 do Artigo 104.º da Constituição, que estabelece o seguinte:

«O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo (o sublinhado é nosso), tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar».

O propósito desta alteração prende-se, segundo o Governo, com a tentativa de aproximar a nossa estrutura do IRS à estrutura existente na Europa, ou seja, em nome da Europa o Governo subverte a nossa Constituição.

Eis um outro tema para o qual todos nós devemos estar não apenas alertados mas, sobretudo, disponíveis para a luta, porque sem luta aquele a quem institucionalmente compete cumprir e fazer cumprir a Constituição não deixará de actuar de acordo com os autores da profunda regressão social em curso.

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Fontes:

Inquérito às Despesas das famílias 2010/2011, INE, Edição 2012;

Boletim Mensal de Estatística, INE, Maio de 2012;

Conta Satélite de Saúde, INE, 27/6/2012;

Inquérito aos Orçamentos Familiares 2000, INE, 23/12/2002;

Diário de Notícias, de 24/7/2012;

Os Grupos Económicos e o Desenvolvimento em Portugal no Contexto da Globalização, Eugénio Rosa, 19/7/2012;

Jornal Público, de 6/8/2012.


 



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